No dia 12 de julho de 1952 a revista O Cruzeiro publicou uma crônica da escritora Rachel de Queiroz falando de Jaguarão. Sabem onde fica Jaguarão? Não? Na fronteira com o Uruguai. Fiquei devaneando na cena descrita pela escritora. A cidade quase não mudou e essa é melhor força da sua vocação. Jaguarão tem a maioria dos seus casarões preservados. Isso a torna um dos sítios históricos mais importantes do país. Há quem a chame de Ouro Preto do Sul. Penso que Ouro Preto é que é a Jaguarão das Minas.
“Fizemos a volta pelo Uruguai. Retornamos ao Brasil via Jaguarão, cidade antiga, calma e clara, muito parecida com as cidades do norte – os sobrados, as casas de biqueira, as moças namorando na janela de oitão. Até azulejo tem. Me dá saudades de Januária, Iguatu, Baturité… Jaguarão, tão brasileira, nascida ali principalmente para tomar conta daquele extremo do território, tão brasileiro; tão brasileira que até seu nome só se pode dizer em português”. A autora de “O Quinze” definiu a Cidade Heroica numa foto 3 x 4.
Jaguarão é o meu marco zero. Nasci lá, em março de 1957. Três anos depois do passeio da escritora. Por lá vivi até os quinze e fui para Porto Alegre. Retornei aos 19 e fiquei até os 20, motivado pela necessidade. Meu pai doente. Precisava apoiar minha mãe e minha irmã. Meu pai morreu em dezembro de 1977. Então retornei para Porto Alegre. Em 1985 fui para bem longe. Morando na Paraíba a ausência poderia ser definitiva. Não foi. Nunca abandonei minha terra. Parte de mim ainda mora na Rua da Paz, 1291.
Fiz questão de levar minhas filhas e torná-las cidadãs do meu pago. Gostam de lá e eu ainda mantenho doces e tristes memórias por lá. Tenho parentes em segundo grau morando na cidade. O cenário visto por Rachel de Queiroz praticamente não mudou. A cidade é tombada. A Ponte Mauá se tornou Patrimônio Cultural do Mercosul. Ainda hoje me mantenho presente no cotidiano da cidade. Na pele das pessoas que conheci e no olhar dos amigos de infância e adolescência que permaneceram por lá.
A cidade vista pelos olhos de Rachel de Queiroz, resiste. Permanece o cenário de uma cidade que guarda “as moças namorando na janela de oitão”. Os sobrados e as memórias dos Farrapos. Hoje uma baita unidade da UNIPAMPA dialoga com o mundo investigando a literatura fronteiriça. Jaguarão não cresce, dizem. Apenas se expande na história de cada um. Terra do grande Edu da Gaita, um dos maiores solistas da história da música brasileira. Uma das maiores representações artísticas do Brasil no mundo.
A cidade do meu olhar também resiste dentro de mim. Ainda caminho pelas pedreiras para visitar minha avó. Ainda reponho lágrimas no encontro eterno dos meus mortos. Foi onde aprendi a caminhar pelo mundo. Viajei, aprendi outros idiomas dentro de mim mesmo. Não saí para vencer e talvez por isso jamais tenha me sentido derrotado. Jaguarão alimenta minhas invernias, meus verões vertendo água na parede. As tempestades de granizo, as enchentes e as travessias que me tornaram resistente.
O que persevera é o guapo e o piá. A energia de uma ingenuidade selvagem que se desnuda em versos para esconder as cores que colhi do entardecer, nas beiradas do Rio Jaguarão. Cada vez que vou ao sul dou um jeito de chegar por lá. Já fui para ficar apenas duas horas na cidade. Um ateu ecumênico, como eu, que foi chorar e rezar nos túmulos da memória. Jaguarão é rebento e vetusto. Meu açude de ancestralidades. Certeza de que lá cavei minha trincheira, onde resisto carregando memórias pelo mundo.
Fonte: Confraria dos Poetas de Jaguarão
2022-05-20 19:42:56