Eu vinha andando de bonde, redescobrindo a cidade. Apreciando, amando. Meu Deus, como é amável, como é bela, acima de tudo, querida, que ela é! Cidade que afinal de contas não é minha, todos sabem. Nasci longe. Mas que coisa será essa que nos faz sentir tão bem no Rio ou em Jaguarão, RS – você que nasceu na rua Senador Pompeu, em Fortaleza? Tão longe um lugar do outro – como assim de França para a Suécia, ou pior. E, no entanto, compare um de nós com um do Jaguarão e compare um francês com um sueco.
Pois é. Isto é pátria. Essa coisa de nos entendermos. De nos sentirmos irmãos, mesmo que às vezes se tenha raiva do irmão. Então pensando, pensando, pode-se dizer assim: pátria é amor.
Porque é a língua, mas não é só a língua. É a História, mas será apenas a História? Todos temos recordações comuns, D. Pedro I e Feijó e a Guerra do Paraguai. O moço de Jaguarão talvez evoque mais o General Osório, a moça do Ceará conhece de preferência o General Sampaio. Um era gaúcho, o outro cabeça-chata. Mas Sampaio e Osório, os dois juntos, são uma coisa só. E passados tantos anos, não fossem os nomes de rua, em Fortaleza e Jaguarão, já não se saberia qual o de lá, qual o de cá…
Pátria, só se sente bem o que é quando se sai dela. Pode ser numa leviana viagem de turismo; você parte rogando pragas por causa da ineficiência disto e daquilo, as moscas no aeroporto, a safadeza do táxi que lhe cobrou trezentos cruzeiros, as transferências do horário do avião; passa pelo Recife ainda resmungando, diz que tem vontade de bater o pó dos sapatos, como fez dona Carlota Joaquina. Pensa que é um apátrida, um renegado que odeia esta terra errada. Desembarca em terras além. Vê Vaticano, ursos de Berna, bebe vinhos de Dijon, anda nas autoestradas germânicas, passeia pelos gramados dos parques londrinos numa extemporânea manhã de sol. E ainda está certo de que viveria feliz em terras civilizadas, em terras com história ilustre, em terras com polícia, mormente em terras em que a política fosse ao menos jogo limpo, não esta vil cabra-cega. De repente, no dobrar de uma esquina (você estava longe de pensar que a embaixada era ali) – de repente dá com os olhos, penduradinha no seu mastro diplomático, na bandeira nacional. Que lhe dá então? Lhe dá uma dor no peito. Sim, apátrida, renegado, exilado voluntário, enojado da bagunça nacional, você lhe dói o peito de saudade e, naquela hora humilde e agoniada, não mais vinhos, não mais Old Vic, não mais civilizados laboristas chamando o Sr. Presidente de speaker! O que você quer é a bagunça, o que você quer é isto mesmo, é Brasil que você quer!
E assim, pois, que diremos que é pátria? Ai, diga-se também que pátria é uma dor no peito.
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Pode ser o vulto da bandeira na sua forma material, surgindo aos seus olhos na terra estrangeira. Pode ser uma citação, aquela evocação da bandeira num verso em que jamais se reparou, de tão recitado e escutado automaticamente, nos perseguindo desde a escola – “auriverde pendão de minha terra”… Pode ser um pouco de português carioca falado de súbito numa mesa de bar, em Lugano. Pode ser o time do Vasco na tela do cinema, em Florença. Pode ser um simples anúncio de café do Brasil que lhe causa o choque, lhe renega e destrói a sofisticação internacionalista.
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Mas aqui dentro, aqui dentro, a ternura se esconde e quem sabe se desvanece. Fica o desgosto. Às vezes a cólera, outra vez o desespero ou o desânimo. Tanto amor que a gente tem no peito, para quê? Afinal, somos todos como o filho pequeno que assiste ao padrasto bater na mãe da gente. Ou enganá-la; ou liquidar a herança do finado. E se a gente se juntasse todos? Mas menino não se junta. Menino é como doido, é como jogador de futebol brasileiro, não age de combinação. E contudo, todos os filhos, mesmo descontando os que não ligam ao quarto mandamento e não honram pai e mãe, mesmo descontando os que punem pelo lado ruim, ainda ficavam milhões e milhões, não era mesmo? E não fazemos nada, a não ser chorar um pouco. Ficamos no nosso canto, encolhidos, detestando, engulhando de aborrecimento, pedindo a Deus uma chance, uma economia, uma bolsa de estudos que nos permita de novo o exílio e o esquecimento.
Mas nem isso é possível. E se fosse, para quê? Pátria não se arranca como tiririca. Se basta dar com os olhos na placa da Place Rio de Janeiro ao lado do Parc Monceau, e reparar como é tão diferente Paris do Rio, e a saudade apertar no peito justamente por causa da contradição que se procurou? E querer voltar de qualquer jeito, querer sofrer, e vir para cá, nem que seja para dar a carne aos ladrões e a alma à polícia? Melhor ficar e estudar Geografia. Se a História e os jornais não dão consolo, a gente ao menos aprende os limites, providencia um certo orgulho – pois, diga-se o que se disser, este Brasil é grande, não é mesmo?
Rachel de Queiroz
Fonte: Portal da Crônica Brasileira