Por José alberto de Souza
Don Ramón trabalhava na Aduana uruguaia da Ponte Internacional Mauá (Rio Branco) e, ao que me consta, tinha seus “bicos” como agente do magazine London Paris, de Montevidéu, capital daquele país vizinho.
Como tal, costumava ir até Jaguarão, no lado brasileiro, para repassar o volumoso catálogo daquela conceituada casa comercial a meu tio Cantalício Resem. Para mim, menino ainda, era uma tentação folhear as páginas da esmerada publicação, sem exigir aquisição de qualquer produto ali exposto, cuja encomenda era decidida por quem dispunha dos recursos necessários.
Pois este catálogo e mais as figurinhas do chocolate Águila, então adquirido “allá de la puente”, ainda permanecem fixados nas recordações duma longínqua infância. Lembro ainda que Don Ramón era irmão de cor e sangue de Frederico, que morava e vendia bilhetes de loteria em nossa cidade. Ambos negros elegantes bem vestidos, mas que se distinguiam falando cada qual o idioma da localidade em que residiam, já que seriam “hermanos” apartados por duas pátrias com um mesmo berço de origem – o que bem caracterizava o nosso amálgama fronteiriço.
E assim me esforço para trazer a mente outros bilheteiros como a admirável figura humana do saudoso Buré, deficiente físico com defeito em ambos os pés e dificuldades na fala, mas com uma notável capacidade de superação. Buré morava bem longe, lá pelos subúrbios da capela São Luiz, e se deslocava de pés descalços até a zona central de Jaguarão, sem recursos na época para usar sapatos especiais. Torcedor fanático do Navegante Esporte Clube, insinuava-se pelas mesas do Café do Comércio, sempre bem recebido e generosamente aquinhoado com o troco do cafezinho.
Fui-me da querência e andei por outros rincões, sem que deixasse de chegar inúmeras vezes por lá para rever amigos e parentes. E Buré que ali ficou, quando me enxergava sempre tinha seu bilhete com a saudação cordial, enquanto eu notava uma transformação gradual em sua vestimenta e aspecto físico, alcançando almejado par de sapatos, além de roupas limpas e chapéu que lhe garantiam uma melhor qualidade de vida. Como resultado da profícua e honesta atividade que exercia.
Remexendo no subconsciente, surge-me uma época em que frequentava a casa de meu primo Anysio de Souza Resem, vizinho da residência e oficina mecânica de Cláudio “Sheda” de Freitas, ali fazendo amizade com a turma vizinha que me acolheu na esplanada das figueiras de trás do Mercado Público, onde o pessoal corria atrás de uma bolinha de meia, muito bem tratada por um negrinho franzino, conhecido por Hiria, abusando de dribles desconcertantes. Paulinho e Adão, da família do “Sheda” e mais Ercio Gentil eram outros companheiros inesquecíveis.
O “campinho” se situava entre a Usina Elétrica e o Mercado, no início da Rua 27 de Janeiro e, na outra rua paralela, XV de Novembro, havia um amplo largo totalmente desocupado até começarem as obras de construção da Capitania dos Portos. Cercada de tapumes, que a gente dava jeito de invadir para dar vazão às travessuras imaginadas num esconderijo das vistas de qualquer passante na Avenida 20 de Setembro (Beira Rio), propício para assombrar algumas pessoas inadvertidas nas horas mais sossegadas. Para dar o tom de alma penada, eu ainda arranhava na gaitinha de boca.
Numa dessas ocasiões, circulava ali na Beira Rio o bilheteiro castelhano Marrecão, baixote e troncudo, buscando algum cliente para acenar com a sorte grande. Não deu outra – na linha de frente, a artilharia de estilingues se preparou e lançou as bolinhas de cinamomo (paraíso), pegando em cheio o incauto que logo se virou para ver de onde vinha aquela saraivada. Intrigado, aceitou a trégua e seguiu seu caminho. Ai resolvi soprar a gaitinha para assistir os companheiros correndo de um lado para outro, o que me obrigou a seguir atrás até me topar com Marrecão adentrando o recinto. Não chegou agarrar nenhum de nós, mas não deixou de dar queixa ao Sheda e, a partir do dia seguinte, este colocou seus guris no batente da oficina e ponto final em nossa diversão.